O cursor pulsando na tela vazia. O coração piscando no corpo oco. Fulaninha vomitava, do muito beber. E
escrevia, do pouco viver. E escrevia como quem vomitava. E vomitava como quem
escrevia. Um
amor havia acabado de desviver, assim, levava com ele a razão de ser. Era a
primeira vez que ela deixava um amor realmente morrer. No inventário constava
uma dívida de meia dúzia de palavras não ditas e uns três verbos sem ação.
Tinha quatro ou cinco lembranças, empregados sem remuneração, e a saudade,
interditada, herança de ninguém.
Foi com as juras e promessas que pôs-se
a cavar a terra como quem arranca as entranhas. Parecia que o buraco convidava
ela e não o morto. Quis chorar, mas riu no desatino dos dementes. Lançou-se a
cavar mais e mais fundo. E arrancava a terra com os dedos em carne viva. Terra
e sangue já eram uma espécie de emplastro. Sujou as roupas, o cabelo, tudo era
uma lama só. Na loucura com que cavava, sem perceber, desenterrava antigos
amores. Jovens, velhos, alguns morreram sozinhos e ela nem tinha feito conta,
outros, ainda agonizando, seguravam-na pelo tornozelo, arranhavam suas pernas,
queriam reclamar vida, a deles, a dela.
Surpresa, mas não assustada, ficou, não
quis correr. O que mais a comoveu foi ver aquele pequenino, tão gracioso, mal
abria os olhos, pobre pagão que ela não batizou. Com o pequeno no
colo fez-se toda saudade. Foi o primeiro que matou com as próprias mãos. Andou
entre aqueles amor(tos), ali, exumados pela dor dela e se demorava ao lado de
cada um com ares de viúva inconsolável. Velava a cada um com saudades
ardorosas. Despedia-se de cada um como jamais pensou que poderia.
É bem verdade que, dados momentos,
Fulaninha reconheceu-se fraca, pensou que também morreria por ali. Estirou-se amortizada ao lado dos amores e, não sem desespero, esperou que isso acontecesse, tamanhas eram
as sofrências. Cada fisgada lhe consumia o juízo, mas a razão estava de vigia,
ruminando sensatez. Quando o último deu o suspiro derradeiro no peito dela,
levantou-se dolorosamente aliviada. No fundo ela sabia que embora amor(tizados), amor(tos), seriam sempre amores e viveriam nela. Mas a cidade ainda guardava muitos armários, as rodoviárias e aeroportos teriam
ainda muitos encontros e despedidas, os dentes aguardariam muitas piadas, os
cabelos cresceriam e encurtariam desmedidamente na espera de outros tantos afagos. Ela ainda teria outros
lindos sonhos dormindo em diferentes mochilas e, na hora certa, saberia abrir
os braços para novos abraços. Foi assim, vinicianamente, que Fulaninha entendeu
que, de fato, era possível sobreviver, embora não sem dor, à morte de todos os amores,
mas realmente sentiu-se morrendo só de imaginar a perda de todos os amigos.
5 comentários:
Adoreiii!!!
"O fim de uma história é a oportunidade para começar a escrever uma outra muito melhor"
Bjs
Gis!!!
Enterra, acende vela e chora igual as carpideiras. Me convida para beber cada um desses mortos e depois vamos ao encontro dos vivos =)
beijões!!!
Bru
Para mim, enterrar não é esquecer, nem deixar de ter. É apenas simbólico. Procedimento. Mas lidar com a morte vai além disso. Principalmente, quando a gente percebe que enterrou, mas que a pessoa não morreu. A questão é mais complexa... e isso pode render um outro texto rsrs
Bjo!
se é finados então tudo finda logo um batalhão de vermes saciarão sua sanha de devorar os amores inertes que só insistirão em existir na mente de dona Fulaninha e serão lembrados novamente depois do dia de todos os santos amém
Quisera eu ter o poder de impedir uma reminiscência que seja...
Venham lembranças, venham... Cada escombro há de servir para construção de um novo lindo edifício!
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