quinta-feira, 13 de outubro de 2011




Quem requenta        

             Sentimentos deve

  Estar pronto para

Digerir ressentimentos


Foi descendo cambaleante a escadaria que dava pro porão de si. Teve medo, mas não recuou. O cheiro forte de esquecimento lhe impregnava as narinas, era pior do que mofo, mas Ela suportava. De repente fez-se silêncio de fora pra dentro. Toula ficou toda quietude. O lado de lá ia ficando longe, tudo não passava de eco distorcido, distante, distante, quase silente. E Ela não entendia, ouvia os cabelos crescendo. Escutava os pelos das axilas também. Parecia que tudo crescia pra dentro. Ela pensou que estava engolindo o mundo todo sem mastigar. 

E aquela vertigem. Os olhos iam ficando nus e tudo parecia se revestir daquela sensação. Percebeu que as lembranças esquecidas despertavam quando viu o primeiro vulto. De pronta saltou saudosa, mas recuou horrorizada. Estavam todas transfiguradas, aquelas memórias, sujas, sujas, rasgadas, faltando pedaços, amassadas, descoladas, desdobradas em amarguras. O estômago era todo coração. Toula inteira parecia pulsar. Tudo se embaralhando nos pensamentos e Ela não sabia explicar. 

A língua, quente e úmida, estava envolta por uma linguagem oca. A falta de palavras sentenciava os ouvidos feridos que, resignados, tateavam aquele silêncio com a curiosidade de uma criança que nunca enxergou. Toula fazia questão de separar ontem de amanhã feito quem separa joio do trigo e nem reparava que o agora se tornava uma rachadura. Um grande buraco negro sobrava e ia engolindo tudo com uma voracidade digna da saudade e tão dolorida quanto a decepção. 

Aquela frase. Aquele som. Como era mesmo? Uma veZ... E contava. E morria de rir. E morria de raiva. E morria de saudade. E (re)contava a história, assim, mil vezes, imagilembrando, por que só lembrar não bastava. E exagerava, bruta. Passou a prostituir as lembranças, a violentar o passado, a contrabandear sentimentos. Tudo a troco de nada. Quando cansava, lavava as mãos com nojo e a certeza de que nunca fora e partia. Tinha um medo danado de que aqueles momentos virassem doença, que se impregnassem nela feito sujeira e mal percebia a lama da fossa lhe tomando os joelhos. Sim, era violento demais existir. Toula deixava de ser.

6 comentários:

Anônimo disse...

"Tinha um medo danado de que aqueles momentos virassem doença, que se impregnassem nela feito sujeira e mal percebia a lama da fossa lhe tomando os joelhos." (2º)

Z...

Daiane Brito disse...

Eu sou foda!!! Decifrei o enigma hehehe

Ahhh e adorei o texto!!! Vc viaja e faz seu leitor embarcar junto...

Daiane Brito, jornalista investigativa

Cris disse...

Taí porque todo filme de terror tem um porão sinistro; aquele canto esquisito que serve para guardar segredos do passado, hospedagem de fantasmas.
Bom, na "minha casa", que é muito simples, no lugar do porão construí um jardim. Não sei até hoje se isso foi bom ou ruim, já que fiquei sem canto para guardar meus rancores e assim, de vez em quando tropeço num e o acabo remessando no...no jardim!

Andréia Félix disse...

"Quem requenta sentimentos deve estar pronto para digerir ressentimentos" (adorei!)

Todos têm porões, mas é bom fazer uma limpeza neles de vez em quando, né? HAUAHAUAHAUAHAA

Assim como a Dai, também decifrei o enigma. Essa foi fácil rsrs

Ah, e mto bom o texto! Criativo também!

Bjo!

Anônimo disse...

Mude-se!
Faça uma mudança de pouca malas, leve somente o que pode carregar, há muita bagagem pesada nesse porão, quiçá no resto da casa, há certas lembranças que são densas até mesmo para a memória, mas parece que os braços da memória são mais transigentes, suportam mais do que acreditamos que suportariam, mas as vezes nem mesmos eles suportam certas bagagens...
Livre os braços de sua memória, livre-se do seu porão, lembranças são como segundo prato, nunca tem o mesmo calor, não são tão quentes, nos deixam saciados..fartos..as vezes chegam até nos causar azias...
Enquanto os braços de suas memórias estiverem ocupados com tão pesadas lembranças, você não conseguirá abraçar o que está na sua frente,há muita coisa em seu caminho esperando a oportunidade de quem sabe..virar uma lembrança..mas esse é o segundo plano!
Mude-se!
E para um lugar que tenha no máximo...um sótão!
Unik Tanpa Nama
(Ás vezes até mesmo um anônimo precisa de uma identidade)

Gislene Trindade disse...

((rs+))
Concedo a vc, ilustre 'desconhecido', meu primeiro sorriso do dia.