quinta-feira, 27 de maio de 2010

O presente

Quero lhe dar um presente, mas temo que não caia em suas graças. Acho que esse é o receito de todo presenteador. Assim sendo, decidi apresentá-lo de antemão: saiba que esse é o tipo de presente obstinado. Confesso que quando o recebi, fiquei aflita, tive medo de não ter a quem entregar. Então, assim como a “borrachinha” de Itu, guardei –o para alguém, alguéns, talvez.

Agora mesmo quis voltar na minha resolução, mas já era tarde demais. Você está tão impregnado nele, que ele já é seu antes mesmo que você saiba ou aceite. Não posso negar que me consterna a ideia de que depois de entregue ele seja assim, tão seu, que você tenha total domínio, que possa fazer tudo, que possa fazer nada.

Pois bem, é totalmente destituída de pudor que lhe entrego uma palavra. É bom que saiba que não se trata de uma qualquer, essa em especial me é muito cara. O verbete quer dizer tanta coisa que talvez o certo fosse dizer “uma palavras”.

Deixe-me explicar, desde cedo meu avô me ensinou a amar as palavras, a admirá-las como um engodo, a adentrar o significado, incorporar cores, texturas e sons. Medrosa que era, anotava as favoritas para não esquecer. Guardava-as uma a uma para “gastá-las” em ocasiões especiais e fazia questão de dizer o significado ao interlocutor que, a meu ver, nunca saberia sozinho.

Mas se por ventura eu pegasse esse meu “aluno” usando a palavra, minha palavra, era tomada por uma onda de ciúme que me entontecia a ponto d’eu não conseguir continuar a conversa. O golpe me era realmente fatal quando a lia em um texto que não fosse meu. Sentia-me roubada. Ahh... Que saudade.

Agora que esclareci, chega de delongas. Essas digressões são apenas para que compreenda e reconheça, querido desconhecido, a importância desse presente, agora tão seu.

“Tchai”

3 comentários:

Cris disse...

Muito obrigada!!! Nem sei como eu consegui falar até hoje sem "ela".

Palavras ao vento, palavros no acento, sem acento, com ou sem sentimento...subterfúgio de pensamentos. Lei da expressão, veículo da razão, instrumento da delação, liame da união...estrutura da compreensão.

Não as guarde para si jamais! Não furte do mundo o direito de evoluir também. Podem lhe roubar a autoria, mas nunca o prazer de ver o efeito dela se propagando!

Cris disse...

FRASES. FEITOS E EFEITOS PARTICULARES:

Na manhã da minha existência (ali, já por volta do meio dia), eu não sabia como e quando usaria uma determinada frase na minha vida. Aconselhava-me que era muito importante dize-la e que não se podia viver sem nunca te-la ouvido, nem que seja uma única vez.

Pois bem, num certo dia senti que era hora de dize-la à alguém que me era especial. Pela urgência do momento, atirei a frase como quem joga uma corda para quem se afoga sem saber. Não compreendeu, virou as costas e a deixou cair no chão, rolando sargeta a baixo. Veio a chuva e a levou para sempre.

Passado algum tempo, me procurou. Sentindo que realmente se afogava perguntou pela frase. Mandei-o procura-la no rio tietê.

Outros tempos. Outro apareceu. Pensando que me afogava a jogou em mim tantas vezes que quase me mata enforcada. Não queria salvar a mim, mas a ele mesmo, então a devolvi, como quem acha um objeto perdido. Ganhou o adjetivo de ingratidão, perdendo o sentido que nunca lhe havia pertencido naquela ocasião.

Hoje, escolhi dize-la por métodos pouco convencionais, deixando-a implícita nos meus gestos, e ao acaso da compreensão a sua tradução. Procurar por ela não ousarei de novo, apenas sigo seu rastros impressos no meu coração.

Assim, jas defunta no cemitério das hipocrisias esta maldita, cujo epitáfio sustenta, ostenta e reclama o peso de sua existência insana na minha vida, a velha frase “eu te amo”.

Cris disse...

Já que o tema de hoje são as palavras, eu tenho esta que ficou no bolso:

O VIAJANTE: UMA PALAVRA, UM PROTESTO!

Viagem longa. Dia quente. Ônibus lotado. Estrada a dentro e uma empresa de engenharia resolve entoar um poema de Carlos Drumond Andrade em pleno dia, no meio da rodovia.

Pedras rolaram e o trajeto fora embargado por horas. Congestionamento de carros, passageiros ao ar livre e lá estava ele todo fardado, emperdigado, lançando os mesmos olhares discretamente safados do início da viagem. Todos tentavam quebrar o tédio da alguma forma pensou, menos ela envolta com seus problemas.

Fim da viagem e todos seguem o destino dos seus destinos.

Meses depois, lá estava ela de novo prestes a iniciar o mesmo trajeto. “Passagem por favor” e um olhar lateral lhe queimando as ventas. Era ele. O mesmo! E seu olhar safadamente reconhecedor também!

Passa pelo seu assento a procura do seu lugar aos fundos, não sem antes deixar bem claro que o assédio visual continuaria de onde havia parado...deve ser o destino!

Viagem a fora, tédio a dentro e ela resolve corresponder àquele solilóquio mudo e sensual. Ela vai ao toallete, volta...nada! Tira a blusa demoradamente, como quem se despe numa noite de núpcias. De soslaio vê um olhar salivante, senta, espera...nada!!!

Enfim, o destino dele o esperava antes do dela. Na procissão da descida ele se demora mais que o necessário ao lado do seu assento. Olhar fixo e a língua guardada dentro da mochila. Ela se conecta nos seus profundos olhos negros, quebra o silencio na ousadia de um “tchau”, com uma piscadela. Ele devolve a palavra com o chiclete quase saltando-lhe da boca e...nada!!!

Já do lado de fora, ele para defronte a sua janela. É agora - ela pensou. Telefone, email, msn, código genético...nada!!! Apenas e tão somente conseguiu traduzir uma única palavra proferida e inaudível naquela circunstancia, mas bem compreensível:
G-O-S-T-O-S-A!!

Massagens no ego a parte, ela sorri para si mesmo e grita em pensamentos: “de que adiante convencer-me deste predicado SE EU NÃO POSSO ME COMERRRRR!!!”.

E o viajante segue levando seu cérebro dentro das cuecas. E ela segue se recomendando de nunca mais colocar o seu no compartimento de bagagens.

E tudo que não fora dito, fica pelo não dito. E tenho dito!