quinta-feira, 6 de agosto de 2015

Sujeitos insubordinados

Se tiver paciência, deixo você me ler à noite e me traduzir pra mim, só pra te ver de madrugada dedilhando minhas consoantes no violão. 

Se tiver paciência, escrevo pra você sobre você em mim. E, se preciso for,  flexiono meus verbos com seus pronomes no presente do indicativo. Posso soletrar minhas intenções, ideias amordaçadas pelo bom senso, todas no porão da razão.

Se tiver paciência, tranço meu pronome com seu substantivo, declaro meus predicados pra você, crio uma nova sintaxe pra vivermos insubordinados, mas só se for paciente e me ler até o fim, meus pensamentos em estrofes, minhas falas em parágrafos, pontuadas por silêncios escorregadios.

Se tiver paciência, invento um passado para melhor maldizer o seu sem mim, embrulho o futuro para presente com mil laços feitos todos em nós.

Se tiver paciência, vou deixar meus artigos transvariando com seus gêneros, rabisco alguns advérbios para que você entenda minha intensidade. E se você sobreviver à loucura e urgência das minhas interjeições, talvez queira criar comigo uma nova classe gramatical, com pronomes que podem ser pessoais sem precisarem ser oblíquos.

segunda-feira, 20 de abril de 2015

Pelos olhos dela

Eu via esse relógio encantada, fascinada. Tinha sido construído há muito tempo, e com muita dedicação. Me surpreendia mais a dedicação. Por isso que eu devo gostar tanto de coisas antigas, daquelas grandiosas obras do passado que ainda se mantêm em pé, resistindo ao passo do tempo: incompassivo, persistente, inesgotável. Eu me encantei com esse relógio. Tentei registrá-lo numa foto, mas ele burlava-se da minha intenção: extravasava sempre os limites.

Não consegui uma boa imagem, mas cada vez que eu a vejo consigo me lembrar daquela noite fria, naquela cidade de pedra, da minha felicidade. Já isso basta. Gosto de pensar que aquele relógio, esse orgulhoso ostensor do tempo, não poderia ser jamais registrado. Não, ele não posa; ele, na verdade, riu da minha pretensão, pois eu vejo, sim, o posicionamento das agulhas pretas, pesadas, de ferro; mas não o tempo.

Embora essa imagem evoque mais uma lembrança prestes a ser barrida pelos incessantes giros das agulhas; também sugere-me uma idéia, que reconheço imortal: a beleza enigmática do tempo que escorre, como um rio que não alcança nunca o mar.

María Mara*
Rio de Janeiro, abril de 2015

*A jornalista María Mara é conterrânea de Jorge Luis Borges e muito afeita ao idioma de Machado de Assis. O texto foi escrito por ela, mas é tão meu, que faço aqui um empréstimo.

terça-feira, 10 de fevereiro de 2015

Aquele da terceira pessoa

((((Quases)))) ecoam nos meus pensamentos e eu nem sei dizer desde quando. Acho que foi Emílio quem me fez parar para pensar na delicadeza do quase pela primeira vez, uma espécie de não-algo que é algo, por assim dizer. Nem sei como explicar esses micro-abismos, pequenas rachaduras na alma, milhões de pedaços, partes desconexas da mesma pessoa inteira, mas inacabada. É como se cada um estivesse se continuando dentro, sabe? No meu próprio paradoxo espaço tempo.

Emílio, assim como o quase, é uma espécie de sujeito oculto em si, desses tipos que vivem em terceira pessoa, embora singularmente. Mas voltemos ao quase, existe beleza e, por vezes, certa tristeza neles, costumam viver bem naquela hora em que a ideia surge reluzente, antes de parecer boba. Um lugar onde os sonhos não foram acordados e estão se realizando, procriando sozinhos, onde aquela frase foi terminada, a mensagem foi enviada, onde faz mais sentido ser do que estar. Os quases moram lá, nesse lugar onde deixam de ser advérbios e passam a ser deuses, a criar seus próprios verbos, os próprios destinos, assim como Emílio, acho.

Meus quases poderiam ser catalogados em ordem alfabética ou grau de importância, mas como nunca fui dada a esse tipo de organização, acabo perdendo, esquecendo ou tropeçando nessas promessas moribundas. Emílio poderia ser rockstar e pular na platéia suado sem camisa, ou romancista e criar um personagem chamado Emílio que gosta de filosofar com a caneta entre os dedos. Nem sei o que é de Emílio hoje em dia, mas vez em quando, nesses momentos em que ninguém está por perto, gosto de falar o nome dele em voz alta, E-M-Í-L-I-O, só para ouvir o som das vogais se misturando avantajadas, rendendo as duas únicas consoantes. Parece uma batalha violenta, mas não, estão se roçando em movimentos delicados e sensuais, parece uma dança, mas Emílio provavelmente nunca se deu conta.

Tenho vontade de contar a Emílio tudo que sei sobre os quases, mas ele deixaria de ser um dos meus favoritos, dos bem sucedidos, tão bem sucedido... Tanto que às vezes penso ser eu a ideia inacabada dele, como se nem tivesse chegado a me transformar em personagem e agora eu estivesse me continuando sozinha, tropeçando nos meus próprios conflitos enquanto ele assiste achando graça e torcendo para que eu nunca me termine. Emílio é tóxico, dessas pessoas vivas demais, você se aproxima e não quer mais sair de perto. Depois que ele vai embora você continua tentando marcar o próximo encontro, a próxima dose. Todos que conhecem Emílio são viciados nele, mas ele não sabe ou finge não saber.

Mais uma vez, voltemos aos quases, o que estou tentando dizer é que todo quase guarda em si o acidente da perda, por mais que resultem ou sejam resultados de ganhos. Não sei ao certo como cheguei a esse ponto, mas essa é a síntese do que penso sobre os quases e já não tenho mais certeza se foi ideia minha ou de Emílio.

segunda-feira, 17 de novembro de 2014

Carta aberta a uma mãe escorpiana

Somente agora me ocorreu as inúmeras oportunidades que eu perdi de dizer: “Desculpe, sou filha de escorpiana”. Somente agora me ocorreu pensar no quanto isso significa. É preciso dizer e os entendedores me entenderão, não é fácil ser filha de uma escorpiana, mas poucas coisas são tão apaixonantes quanto o jeito vibrante dessa “espécie”. Ser filha de uma escorpiana é crescer alimentada com entranhas, literalmente. É desde cedo aprender, nem que seja na marra, a viver visceralmente com os extremos, a dançar neles, com eles, por eles, apesar deles.

Eu tive o privilégio de crescer com uma mulher daquele tipo que nunca passa despercebida, seja qual for o lugar. O magnetismo dela é irresistível, tem brilho e mistério nos olhos dela, não há quem não queira ser alvo. Tem simplicidade e extravagância no riso dela, não há quem não queira ser o motivo. 

Ela hipnotiza, tem graça nos movimentos, é impossível não tentar acompanhar os malabares dela fazendo mil coisas ao mesmo tempo, sempre cantando. Ela faz tudo parecer simples, qualquer que seja a tarefa parece parte de uma dança em que ela sabe de cor a coreografia. Ela é cantora, bailarina, domadora de leão, minha heroína. A vida com ela vibra nas notas mais altas e ela parece nunca estar fora do tom.  Com e por ela aprendi a ser mais forte, mais valente e destemida. Foi ela quem me ensinou que é preciso olhar menos nos retrovisores para dirigir melhor.

Ela é do tipo de mulher que intimida e encanta na mesma medida. Ela sabe ser leve sem perder a intensidade, sabe dizer não sem deixar de ser acolhedora. Não tem palavra que alcance o sentimento de gratidão, de saudade, de amor que sinto por essa mulher. Poucos colos nesse mundo vão ser tão confortáveis. Não tem olhar de reprovação mais doído, assim como não tem sorriso mais iluminado. Ouvir um "Boa sorte, filha", sempre vai ser equivalente a encontrar um trevo de quatro folhas. Não somente agora me ocorreu a sorte que eu tenho de ser filha de uma escorpiana em especial. Eu te amo, mãe. Feliz aniversário.

segunda-feira, 10 de novembro de 2014

Do riso que puxa o anzol

Porque depois de meses sem voltar pra casa, chega aquele momento em que você se vê  em um carro em alta velocidade sem retrovisores e acelera ainda mais sem olhar para trás, não por medo ou ingratidão, mas porque depois de algum tempo na estrada você dá beijos no vento, descobre que a solitude, mais gostosa que a solidão, é a melhor enciclopédia de você. A saudade é redimensionada porque você percebe que, uma vez fora de casa, ela vai sempre ser parte da bagagem, por mais que ela sequer exista nos novos idiomas que você vai conhecer. O caso é que você deixa de ter círculos sociais e passa a conviver em aspirais sociais em constante movimento entre chegadas e partidas. Toda vez que a saudade chega, você sente gratidão por vê-la ligar pontas distantes que talvez nunca mais se conectem de novo fisicamente, embora sejam conexões que vão sempre reverberar no seu jeito de ser. 

No processo você aprende a se permitir, a resgatar partes obsoletas de você e a aceitar as novas. Quando o ângulo muda e você embarca nas novas perspectivas, começa a perceber que é possível ver mais mundo que supostamente caberia nos olhos, a conhecer mais gente que supostamente caberia na lembrança, a mostrar mais dentes que supostamente caberiam na boca, a viver mais do que supostamente aguentaria o coração.  O lábio tende a tremular no que alguns chamariam de felicidade. É o riso que puxa o anzol.